Raízes no campo
Longe se vão os dias em que recitava
“O que é Pátria, meu menino?
Meu menino, Pátria é:
A boneca que você embala,
A bola que você joga,
O carrinho que você empurra,
A pipa que você empina.”
(…)
(Arlete V. Machado)
Esses versos aprendidos no Grupo Escolar Dom João Bosco e recitados em ocasiões diversas marcaram a minha trajetória e me impulsionaram à escolha de minha carreira: servir à Pátria. Poucos anos depois de as Forças Armadas, atendendo aos apelos sociais, abrirem suas portas para a entrada das mulheres, decidi ser uma delas. Assim, no verão de 1995, Salvador (BA), uma das mais belas capitais brasileiras, me recebeu para realização de meu sonho! Admitida através de concurso realizado em âmbito nacional, iniciei ali, na Escola de Administração do Exército (EsAEx) hoje Escola de Formação Complementar do Exército ( EsFCEx) os aprendizados da vida na caserna. Mas o verão se foi… outras estações vieram carregadas das instabilidades tão próprias delas. No outono as folhas caíam e meu pelotão e eu tratávamos de varrê-las logo, antes de passarmos o serviço de guarda ao quartel para o próximo grupamento. No inverno ordem unida, tiros noturnos, acampamentos, sobrevivência no campo, ataque e defesa eram as lições do cotidiano. Na primavera, na sala de aula rodeada por uma bela paisagem própria da estação, era onde deveríamos estar pontualmente após o treinamento físico. Vivi por um ano fazendo dos toques do clarim de APRESENTAR ARMAS! SENTIDO! DESCANSAR!… as músicas que embalavam o sono de um pequenino, pois quando vesti a farda pela primeira vez, carregava comigo um recém-nascido. O ano termina, um ciclo se fecha. Agora estava pronta a 1º Tenente Márcia para, então, seguir para a Amazônia e colocar em prática o que foi aprendido. Depois da Amazônia veio o segundo filho, o Pantanal, o Litoral, o Cerrado… em cada mudança, a vida militar austera ensinava, moldava, fazia de minha farda minha segunda pele. No entanto, o que fazia muita diferença era servir em colégios militares do Exército e conciliar a farda e o ensino das letras, afinal, a minha formação primeira foi como Professora. Como militar, pude ser instrutora do curso de formação para as Sargentos Temporárias do segmento feminino, vivenciar a vida na caserna como Oficial de Dia (Oficial responsável por uma unidade militar conforme uma escala prevista) e desempenhar tarefas burocráticas nas seções de Inteligência,Relações Públicas e Comunicação Social.Como Professora de Língua Portuguesa e Literatura, continuei permeando o mundo dos versos,do ritmo e da poesia que sempre fizeram parte da minha essência. Fruto dessa dupla missão estive, por três vezes, a frente de uma comitiva de alunos do Sistema Colégio Militar do Brasil em visita oficial à sede da ONU (Organização das Nações Unidas) em Nova Iorque e à Universidade de Havard em Boston para a participação em um evento conhecido por HMUN (Havard Model United Nations). Agora, como Tenente Coronel da reserva, depois de ter passado 25 anos nas fileiras do Exército Brasileiro, olho para tudo isso e tenho comigo a certeza de que, se preciso fosse, faria tudo de novo da mesma maneira. Não tenho saudades do que vivi… tenho, sim, boas lembranças das quais me alimento e certeza de que todos os meus sonhos só foram possíveis porque foram semeados em campo bom, em campo fértil… em Abre Campo.
Brasília, 8 de março de 2021.
Por Márcia Martins da Silva
JORNAL O ABRECAMPENE: Bem, depois dessa crônica sobre sua vida, ainda restaram algumas perguntas. Maria Quitéria de Jesus lutou pela manutenção da independência do Brasil em 1823, sendo considerada a primeira mulher a assentar praça em uma Unidade Militar. Entretanto, somente em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, as mulheres oficialmente ingressaram no Exército Brasileiro. Por que somente em 1943 as mulheres puderam ingressar no Exército Brasileiro?
SENHORA MÁRCIA MARTINS DA SILVA: Em 1943, durante a 2ª Guerra, 67 enfermeiras, oriundas de várias partes do Brasil, compondo o grupamento feminino da FEB (Força Expedicionária Brasileira) e mais 6 delas incorporando aos quadros do Grupo da FAB (Força Aérea Brasileira), foram voluntárias para servir em quatro diferentes hospitais de campanha montados em território italiano pelo exército norte-americano. Porém, terminada a guerra, essas enfermeiras foram licenciadas do serviço ativo. Dessa forma, elas não seguiram a carreira militar. As mulheres só puderam incorporar às fileiras do Exército Brasileiro como militar do quadro efetivo e de carreira em 1992, quando a EsAEx matriculou a primeira turma de 49 mulheres, mediante a realização de concurso público. A necessidade da ampliação de atividades específicas nas diversas áreas do conhecimento (Magistério, Direito, Informática, Administração entre outras) dentro da força terrestre a construção de um exército mais moderno e igualitário foram fortes aliadas para a admissão do segmento feminino , agora em um novo cenário: militar concursada e com possibilidades de ascensão aos mesmos postos anteriormente, ocupados somente por homens.
JORNAL O ABRECAMPENSE: A Senhora ingressou na carreira militar em 1995, através da Escola de Administração do Exército. Hoje, quais são os caminhos para a mulher entrar para o Exército Brasileiro?
SENHORA MÁRCIA MARTINS DA SILVA: De 1992 até os dias atuais, muitas mudanças aconteceram. O Exército ampliou, em muito, as possibilidades de ingresso das mulheres em seus quadros. Hoje, além EsAEx, (escola para os profissionais da área de Magistério, Direito, Administração, Contabilidade, Estatística, Comunicação Social entre outras) temos a EsSEx ( Escola de Saúde do Exército para os profissionais da área médica). Nessas duas escolas o acesso para o oficial de carreira, homens e mulheres, que já tenham habilitação de curso superior nas áreas citadas, é através de concurso realizado em âmbito nacional. Ainda existem outras possibilidades de ingresso das mulheres no Exército. Aquelas que desejarem ser militar, mas não possuem curso superior podem prestar concurso para o IME, (Instituto Militar de Engenharia) e para a EsSLog (Escolas de Sargentos de Logística). Cabe ressaltar que o IME forma oficiais homens e mulheres; já a EsSLog é direcionada para aqueles e aquelas que desejam seguir a carreira militar como praça. Em 2019, quatro sargentos do segmento feminino, formadas por essa escola, fizeram o curso de paraquedismo e hoje compõem uma das Equipes de Paraquedismo do Exército. Tanto a EsSEx, o IME quanto a EsSLog estão localizados no Rio de Janeiro. Em 2018, a AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras- Rezende-RJ) recebeu, pela primeira vez, 33 mulheres, que depois de serem aprovadas em concurso público realizado em âmbito nacional e cursarem por um ano a EsPCEx (Escola Preparatória de Cadetes do Exército-Campinas- SP) se tornaram as primeira alunas cadetes do Exército Brasileiro. Na Academia, elas poderão optar entre o Quadro de Material Bélico ou o Serviço de Intendência. Como se vê, o acesso das mulheres à Academia citada está sendo gradual, pois elas ainda não poderão ser integrantes das Armas combatentes (Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Comunicações).
JORNAL O ABRECAMPENSE: Segundo estatística do Exército Brasileiro, a presença da mulher entre os militares ultrapassa pouco mais de 3%. Esse número despenca para altas patentes. O que está sendo feito e o que pode ser feito para o crescimento desse número?
SENHORA MÁRCIA MARTINS DA SILVA: Apesar de todos os papéis desempenhados, das demonstrações de capacidade e valor e dos progressos feitos pela sociedade em prol da igualdade, ainda há muita resistência à ideia de mulheres no serviço militar, particularmente como combatentes, com o tema seguindo controverso. Se analisarmos o contexto mundial veremos que foi no final do século XX e início do século XXI que as oficiais femininas começaram a desempenhar papéis proeminentes nas forças armadas mais modernas. Cada vez mais países, aceitam mulheres em seus serviços militares enquanto o debate ético e moral continua. No Brasil, o Ministério da Defesa criou em 2014 a Comissão de Gênero que trabalha para ampliar a inserção das mulheres, não só no Exército, mas nas três Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica) de forma gradativa, permitindo o acesso delas em todas as áreas. Entre os assuntos tratados pela comissão estão a preservação da identidade de gênero na socialização das tarefas, a superação de barreiras que impeçam o acesso a todas as funções e postos e a adequação de uniformes e equipamentos pessoais em relação ao gênero. As iniciativas visam ampliar a participação das mulheres, acompanhadas da melhor compreensão da presença feminina por todos os integrantes das Forças. Também, cabe ressaltar que a criação do quadro de oficiais e praças temporários (OTT- Oficial Técnico Temporário e STT- Sargento Técnico Temporário) no final da década de 90, trouxe novas oportunidades às mulheres, pois esses quadros disponibilizam vagas para homens e mulheres de diversas áreas do conhecimento. Porém, nessa condição, o militar só poderá permanecer na Força por até 8 anos.
JORNAL O ABRECAMPENSE: Neste mês, celebramos o Dia Internacional da Mulher. Importante renovarmos a importância das lutas e conquistas das mulheres, principalmente pela igualdade e respeito. Parabéns, Márcia! A Senhora é um exemplo a ser seguido, não só pelas abrecampenses, mas por todas as mulheres brasileiras. Muito obrigado pela entrevista, pela crônica que abrilhantou ainda mais nosso trabalho e que essa entrevista talvez possa incentivar algumas mulheres abrecampenses também seguirem carreira no Exército Brasileiro.
SENHORA MÁRCIA MARTINS DA SILVA: Muito Obrigada! Eu agradeço por essa oportunidade ímpar que me foi oferecida e quero dizer o quanto me senti feliz em poder compartilhar com os leitores de “O AbreCampense” e principalmente com meus conterrâneos um pouquinho da minha história de vida! Para as mulheres abrecampenses que pensam em seguir a carreira militar digo que não desistam! As mulheres precisam ter vontade! Vontade de vencer os obstáculos, vontade de conquistar todos os seus direitos em um universo, até alguns anos atrás, essencialmente masculino, e, antes de tudo, vontade de ter uma vida profissional que, embora permeada de sacrifícios, também nos apresenta alegrias, realizações e reconhecimento!
Caserna: edifício ou alojamento para moradia de soldados, dentro de um quartel, de um forte etc.